Quer ler o que?

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Antes das quatro.

Era verde, pesado e sem título. Olhei para o alto e vi um seqüência de lombadas que alcançavam o rodapé do teto abobadado. Escadas sobre rodas correndo pelas estantes, e eu ainda pequena, segurando o livro reencapado por um couro esverdeado, olhava para o alto imaginando a altura do dito rodapé.

A bibliotecária, dois metros acima de mim, procurava por alguma história que pudesse me interessar.Ao meu lado, um menino de boné laranja e feição traquinas, se esquivava entre a escada e a estante em busca de um relance de pecas intimas ou meias sete oitavos por entre as pernas da loira.

Bibliotecárias Municipais não deveriam usar saias.

Ela desceu com leveza, e sorrindo de um modo estúpido disse: “Querida, achei vários que você poderia gostar. A Branca de Neve, Cinderela, A Bela Adormecida! Todos de princesas! Não seria bacana ser uma princesa?”

Olhei para a capa verde em minhas mãos, e em seguida para a loira sorridente nada persuasiva: “Não. Vou levar esse mesmo". Ela tentou argumentar, convencer, persuadir. Mas, eu estava decidida a levar o livro verde. Aluguei, com o prazo de uma semana para devolução.

Sai da biblioteca, atravessei a rua pela faixa de pedestre olhando para os quadris que também a atravessavam, e me sentei no primeiro banco da praça central.

Senti o cheiro de pagina amarelada exalado quando folheei o livro. Era bem cuidado, antigo e com bordas cobreadas.

Abri a capa, a página do titulo tinha sido arrancada. Pulei a introdução. Estava sedenta. Tinha lido até então somente histórias curtas, de poucas paginas e muitos desenhos.

Naquela manhã, porém, acordei decidida a ir a biblioteca municipal ao lado da minha casa e alugar uma história grande. Tinha tudo planejado.

Esperei minha mãe sair para o trabalho e me esquivei sorrateira. Teria que voltar antes das quatro.

Passei o sumário, cheguei ao capitulo um, li o título e hesitei. Prossegui. Fechei o livro após o primeiro parágrafo. Passei a encarar o couro. Atravessei a rua e chamei pela loira sorridente.
Ela me olhou compreensiva e estendeu os braços esperando o livro para a devolução. Pedi um dicionário, e dessa vez me sentei na biblioteca.

Demorei quinze minutos para ler e entender os dois primeiros parágrafos. Chamei pela moça loira, devolvi o livro verde recebido com um sorriso de satisfação, aluguei Cinderela e naquele dia decidi que nunca mais tentaria ler Machado de Assis.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Margaridas

Pedro entrou em casa, e jogou a pasta no sofá em frente da mesinha recheada de fotos. Chamou pela mãe. Manteve-se o silêncio. Foi para a cozinha, afrouxando a gravata, preparou um lanche, e olhou pela janela. Viu uma senhora de costas com um pincel na mão. Ela mergulhava a ponta do pincel em uma paleta com tintas que formariam uma tela predominantemente azul. Com tons variados, mas sempre azul. Lembravam ondas, lembrava a água, lembrava o mar.

Chegou falando alto, e contando sobre seu dia. Era uma rotina. Chegava, jogava a pasta, afrouxava a gravata e ia sempre para o jardim monologar com a mãe, nem que fosse por cinco minutos. Fazia isso desde sua adolescência. Evitava os olhos, mas contava detalhes do seu dia-a-dia.

Moravam num sobrado, só os dois. Mãe e filho. Deu uma mordida no sanduíche de pepino e ofereceu a mãe, que mergulhou o pincel em azul Royal. Elogiou a pintura, os cabelos, e as unhas cor de rosa e sujas de tinta. Foi para o banho.

Sentia a água escorrer, lavando todo o cansaço, o tédio e a força. Sentia a coragem escorrendo pelos dedos do pé junto com a espuma do xampu, que lavava corpo, pele e simpatia. O bom humor sintético escorrendo pelos ralos.

Enxugou o corpo, os olhos e refreou a vontade diária de chorar. De pijamas desceu as escadas e voltou para o jardim. A tela estava terminada. Uma Margarida branca afogada no fundo do quadro azul. Com cuidado, acompanhou a senhora, que segurava pincel e paleta na mão até o quarto. Limpou as unhas sujas de tinta, lavou as mãos já enrugadas pelos anos, e os cabelos brancos e longos. Não se olharam.

Arrumou-a na cama, e a cobriu como se fosse pai. E com um beijo na testa se despediu. Voltou para o jardim, recolheu a tela. Era domingo. Levou a obra para o quarto dos fundos.

Era pequeno e alto, muito alto. Cheirava a tinta. Com a luz acesa, podia se ver centenas de quadros azuis que subiam pelas paredes até o teto. Juntos davam a sensação de uma tormenta. Pegou a escada e subiu quase alcançando o teto. Mais um no meio de tantas Margaridas. Colocou em cima de um especialmente belo. Ao sair, agarrou uma tela branca e apoiou no cavalete, pronto para o dia seguinte.

Se sentia cansado, do trabalho e da rotina. Se sentia culpado, mas cumprindo seu dever. Queria se sentir leve, mas para isso precisava perdoar a si mesmo. Na sala, guardou as fotos espalhadas na mesinha de centro em uma caixa branca com um laço de madeira. Todas da irmã, Margarida, que na infância, ele assistiu ser levada no mar.

domingo, 7 de junho de 2009

Banho

Subiu as escadas, entrou no apartamento e acendeu a luz.

Tirou os sapatos, ligou o rádio, foi para o quarto e beijou o marido.

Preparou o jantar, chamou o marido.

Comeram em silêncio.

Lavou a louça, se sentou na sala e esticou as pernas.

Estralou os dedos.

Viu tevê, tirou o esmalte e foi para o banho.

Se enrolou em uma toalha, abriu a caixa, pegou a carta.

Releu-a. Fechou os olhos.

Decidiu-se.

Tirou a toalha, foi para a sala. Levou a caixa.

Colocou ópera, se sentou ao lado do marido e colocou a caixa no colo.

Esperou três minutos.

Abriu a caixa, pegou a arma, deu cinco tiros no marido. Mais um por misericórdia.

Voltou para o quarto, guardou a caixa, se vestiu e foi para a cama.

Dormiu.