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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sala de vídeo

Ela vinha caminhando com seus olhos azuis. Os espremeria feito uma espinha gorda assim que ela se aproximasse. Queria ver a retina se separar do globo ocular. Me viu e veio sorrindo expondo as presas brancas.

Oi, tudo bem? NÃO! Não esta tudo bem! Vaca! Levantei os braços pronta pra descer com toda a força em cima da cabeça coberta por sebo e um cabelo loiro. Queria que o impacto fizesse com que ela achatasse, que seu corpo se resumisse a pés e cabeça, que a força fizesse o fêmur rasgar as entranhas daquela vaca.

Tudo, sorri, e você? Responde só ‘sim’, otária! Não faça algum comentário. Azeda. Esperei pela resposta da mesma forma que alguém à beira de um penhasco espera o tiro. A voz me corroia os tímpanos, eu queria fundir ao chão. Queria bater a cabeça dela no vão da porta, bater, bater, bater até o cérebro espirrar pelo nariz e formar uma marca de sangue viscosa parede. Tirar aqueles olhos azuis da órbita.

Tudo ótimo! Seu cabelo ta ótimo! Vaca! Vaca! VACA! Para de mugir! Para de falar ótimo! Sua redundante burra. Morra! Era de propósito. Precisava passar no banheiro pra raspar o cabelo hoje. Com sorte ele teria nascido no dia seguinte. Nojenta!

Obrigada, o seu também. As presas irradiaram Quase podia ver meu reflexo na brancura da boca daquela vaca.

Fechei os olhos e em um segundo visualizei uma voadora no meio da bolota de blush na bochecha dela. Molares e incisivos voando pelo ar espalhando sangue pelo corredor. Queria ver ela sangrar pelas orelhas. E quando ela caísse no chão eu chutaria a merda do estomago dela incansavelmente, até o momento em que ela iria me implorar clemência. Vaca!

Você sabe onde é a sala de vídeo? Sei! No inferno, capeta! Burra! Burra! Burra! Vou arrancar teus cílios na unha. Tem uma placa ali, sua porca. Oferenda!

No final do corredor à direita. sorri. Tomara que você tropece no bebedouro e caia com a cara no lixo. Você ia se sentir em casa! Bastarda nojenta. Exploda! quero ver teus rins pendurados no ventilador! Vaca!

Me despedi sorrindo.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

360º

Olhou para os prédios tentando se lembrar qual seria o seu palco. Avistou-o e caminhou pisando firme. O vestido de malha vermelha esvoaçava em cima do escarpim de veludo, e na mão, tinha uma pequena bolsinha com um kit de maquiagem.

Tudo parecia demais. A quantidade de prédios iguais, a quantidade de andares, e o fato de que o maldito elevador estava em manutenção.

Abriu a porta corta fogo encarando as escadas que a levaria até o vigésimo terceiro andar. A cada degrau ela achava um motivo pra continuar. Estava tudo ensaiado. O que diria, a cara que faria, e o modo como ela se viraria em direção a porta com braveza e olharia pra trás lentamente sinalizando o suposto fim do relacionamento.

Ela falaria sobre os três almoços em que ele chegou atrasado, e sobre a escova de dente que ela sorrateiramente esquecia e ele insistia em devolver pra ela, afinal, não era grande sacrifício deixar uma escova a mais em cima da pia. Reclamaria sobre a mania insuportável de rir enquanto tampava a respiração, e sobre como ela se sentia ultrajada por ele a ter deixado esperando duas horas na porta do teatro.

O relacionamento não era tão longo assim, mas aqueles dois meses foram inteiramente dedicados a ele, e era injusto ele não ter se dedicado em tempo integral.

Ela passara a atender menos clientes no salão, para que pudessem se ver com mais freqüência. Não marcava depilações para o sábado, quem quisesse passar o domingo sem pelos que comprasse uma gilete.

Durante um passeio pela praia ele comentou um filme com uma atriz loira que usava franja. Ela não teve dúvida, no dia seguinte apareceu com madeixas claras cobrindo a testa, mesmo que para isso ela tivesse que acordar uma hora mais cedo pra alisar o cabelo, era uma escova, uma chapinha dupla, babe liss em poucos fios pra parecer natural e voila.

Era um absurdo ela ter se modificado completamente por ele, o cabelo, as roupas, a música, tudo. E ele não se dar ao luxo de aceitar uma mísera escova de dente a mais em cima da pia. Já estava no nono andar com o rosto brilhando de suor, quando começou a repassar o plano:

Ela chegaria no 234, tocaria a campainha, ele abriria a porta, com uma cara surpresa de quem acreditava que iria matar saudades, e ela diria que tudo estava acabado, enumerando os fatos que a levaram a ir até lá e ele se sentiria culpado. A chamaria de volta, ela iria dizer ”Não Carlos, não dá mais. Eu tentei, eu também queria que tivesse dado certo... Talvez não seja o nosso momento” sustentaria o olhar. Olhar do tipo sexy. E por fim, num ato impulsivo e apaixonado ele a beijaria, prometeria que nunca mais a deixaria esperando em restaurantes e para selar essa promessa, ela teria uma Colgate 360º no banheiro. Era infalível.

No décimo quarto andar, sua franja loira começava a colar na testa, a malha vermelha a se tornar vinho embaixo das axilas, e o dedinho do pé direito começava a ficar latejante. Abriu a bolsa, tirou um leque, se abanou por alguns minutos e continuou pelas escadas.

Ela começou a sentir um suor se formando nas costas, e depois uma gota escorrendo pela coluna em direção a calcinha de zebra que ela comprara especialmente para a reconciliação.

Já estava no décimo sétimo andar, e a esta altura, a franja já tinha se acoplado na testa, a mancha vinho se estendia para as costas, e ela já nem guardava mais o leque que abanava freneticamente.Abriu a bolsinha e pegou um prendedor de cabelo, fez um rabo de cavalo molhando os dedos de suor quando passou a mão na raiz um centímetro castanha.

No décimo nono ela decidiu sentar e se recompor. Soltou o cabelo, e procurou um pente dentro da bolsa. O suor desfez a escova da franja que agora apontava para fora. Numa tentativa de minimizar o estrago, ela prendeu a parte da frente do cabelo em um pequeno rolinho no alto da testa. Soltaria antes de tocar a campainha e a franja estaria no lugar.

Tentou se enxugar com um lencinho Kleenex, e se olhou no espelho. O lápis de olho e o delineador tinham escorrido com o suor e ela tinha uma aparência digna de um urso Panda. Tentou arrumar com o dedo, não conseguiu então passou base em cima.
Abanou-se um pouco mais e se arrependeu tremendamente por não ter levado um cantil.

Retomou a escadaria.

Foi subindo com os braços em cima da cabeça na tentativa de deixar o vento secar o vestido na área das axilas. Sentia que estava criando uma assadura na parte interna da coxa, o dedinho direito, em tamanho, se assemelhava ao dedão.

O suor era tanto que ela sentia gotas se formando no cotovelo, os pés já escapavam do escarpim, formando duas bolhas que ocupavam quase todo o tornozelo, no vigésimo segundo, ela quase não acreditava que tinha suportado tanto.

Parou em frente ao último lance de escadas, observando quase com amor a porta corta fogo do 23º andar.

Soltou a franja e subiu. Ainda com a luz do hall apagada tocou a campainha e saiu tateando em busca do interruptor da lâmpada.

O hall de todos os andares era cheio de espelhos pelas paredes. Achou o interruptor e a luz acendeu. Ela se viu praticamente em um espelho de 360º, que não mostra só o corpo, mostra quase a árvore genealógica da pessoa refletida.

Entrou em pânico. Ela estava com uma faixa vinho nas costas, e o formato da bunda marcado no vestido. Lembrança de ter sentado na escada do décimo nono andar. O cabelo formava ondas disformes, e estava tão armado que ela poderia alçar vôo a qualquer instante, ela ainda se parecia com um urso panda e a franja não desgrudaria da testa tão fácil.

Ouviu um barulho de chave rodando na fechadura, e num impulso se jogou por trás da porta da escada.

Ela conseguia ouvir o Carlos chamando por alguém no hall, mas ela simplesmente não podia aparecer daquele jeito.

Parou para pensar quais as suas opções. Não sentou com medo de aumentar as duas circunferências molhadas no vestido. Olhou para porta, olhou para a escada. Agarrou seu leque, criou coragem e começou a descer. Voltaria quando já tivessem consertado o elevador.