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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Flores.

Parou em frente a casa, única no quarteirão, e desligou o carro. A casa era revestida de plantas, folhas verdes brotando do chão até as telhas. Atravessou a rua e tocou a campainha.

Uma senhora apareceu na janela e, por entre as plantas, viu o homem de terno preto e uma pasta na mão.

Abriu a porta da casa e saiu em passos miúdos em direção ao portão carregando um molho de chaves. Foi testando uma a uma no cadeado do portão. O homem era alto, gordo e tinha um queixo protuberante. Convidou-o a entrar com um gesto, e o seguiu até a sala de estar.

Apontou para o sofá e sorriu assentindo a cabeça. Sumiu por uns minutos, voltou com uma bandeja, uma chaleira e duas xícaras.

- Chá?

- Aceito, obrigado.

Com as mãos tremulas, serviu as duas xícaras e se sentou.

Ficaram durante todo o chá em silêncio.

A senhora, de olhos fechados, respirava o vapor em busca do aroma. Passaram-se 15 minutos de silêncio.

- A senhora deve ser a Dona Alva.

Ela assentiu.

- Meu nome é Estevão. Estevão Jordão. Eu sou corretor... – Ele interrompeu.

Ela tinha levantado a mão em pedido de silêncio.

- Sei do que se trata.

- Nós podemos pagar o dobro do valor da casa.

- Não estou interessada.

- Posso falar com o meu chefe, podemos negociar.

- Não, obrigada.

- Um preço bom.

- Não.

- Dona Alva, esse é um bairro perigoso para uma residência.

- Prefiro correr os riscos.

- O centro está longe, não existe mais vizinhança.

- Não quero que a minha casa morra.

- Desculpe?

- Não quero que a minha casa morra.

- Quantos anos a senhora tem, Dona Alva?

- O suficiente.

- Deixa eu te explicar, Dona Alva. Sua casa não vai morrer. Não tem como morrer. Uma casa é um objeto. Objetos não morrem.

- Uma casa morre quando se varrem as lembranças.

- Dona Alva, tire umas fotos, registre suas memórias, e guarde todas em um álbum. Não em uma casa. A senhora mora sozinha. É perigoso uma senhora da sua idade viver sozinha. A empresa pode pagar uma casa de retiro para a senhora. Lá você vai estar sob cuidados.

Dona Alva se levantou e caminhou até a estante onde guardava porta retratos.

- Não, obrigada.

- Sejamos razoáveis Dona Alva, a senhora não tem mais condição de viver sozinha.

A senhora se virou para a direção do corretor respirando fundo e marejando os olhos. Começou a falar lenta e pausadamente.

- Eu me casei, cuidei do meu marido até o dia 22 de abril. A partir daí, criei dois filhos por minha conta. Eu sei como viver sozinha nessa casa. Não estou interessada.

- A senhora podia ir morar com um dos seus filhos.

- Não posso.

- Eles estão desempregados? Podemos oferecer emprego na nossa empresa.

- Morreram.

- Dona Alva, perdão pela indelicadeza, mas a morte é inevitável , talvez seja essa a hora da senhora se desapegar dos bens materiais e aceitar o curso natural da vida. Eu por exemplo perdi uma namorada, mas segui em frente.

- O senhor já perdeu dois filhos senhor Estevão?

- Não.

- Não tente se colocar no meu lugar e eu não vou tentar me colocar no seu. Não estou interessada.

A senhora saiu a passos curtos em direção à cozinha levando a bandeja, a chaleira e as xícaras.

O corretor começou a andar pela casa observando as fotos e as plantas que forravam as paredes. A casa tinha paredes quentes, revestidas por folhas verdes e flores coloridas. No quintal e na sala de estar só se viam flores.

Ele se aproximou de uma bromélia que brilhava e a tocou. Saiu por todo o aposento passando os dedos nas flores e folhas freneticamente.

Parou quando viu o reflexo de Dona Alva na cristaleira.

- Dona Alva, posso fazer uma pergunta?

Ela assentiu.

- Porque a senhora tem tantas flores como essas?

- Senhor Estevão, essas flores te acompanham. Não importa o que aconteça, chuva ou sol, elas te acompanham.

- Não é natural.

- A ilusão é o preço que se paga pela esperança de estarmos acompanhados.

- Não é real Dona Alva.

- Compensa.

- Mas são de plástico!

- Senhor Estevão, as flores de plástico não morrem.

Sim, Titãs.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Hércules

- To indo. Você viu meu casaco preto?

- Na tua frente.

- Ahn.

- ...

- Sabe o que eu tava pensando?

- Sei.

- Sabe?

- Não.

- Quer saber?

- Não.

- Tava pensando que seria super legal se eu casasse com um Adão.

- Você não é católica.

- Mas soa profético.

- Nossa.

- Sério. Podia ter um letreiro luminoso atrás do padre escrito: "Adão e Eva, mean to be".

- Que cafona.

- O letreiro?

- Também.

- O inglês?

- No Brasil é cafona. Escreve um "Era pra ser" que fica menos cafona.

- Ao não ser que eu case nos Estados Unidos.

- É.

- Ah.. Mas ai não vai chamar Adão..

- Por?

- Vai chamar Adam.

- Nossa. Você não tava indo?

- Tava...

- Beijos.

- Podia ter maçã de lembrancinha!

- Podia

- Maçã do amor! Uma árvore de maçã do amor!

- Beijos.

- O prato principal podia ser costela.

- Teoricamente isso seria canibalismo.

- Será que eles eram canibais?

- Quem?

- Adão e Eva.

- Nem que eles quisessem.

- Porque?

- Eles eram os únicos humanos do paraíso.

- Eles tiveram filhos, eles podiam comer os filhos.

- Baby beef.

- Ai que horror.

- Quem comia os filhos eram os titãs

- A banda?

- Não! O pai e os tios de Zeus.

- Pai do Hércules?

- É.

- O Adão podia ser forte que nem ele.

- Que nem o Zeus?

- Pensei no Hércules. Porque Zeus tem cauda de peixe.

- Quem tem cauda de peixe é o Tritão, pai da Ariel.

- Ah é.

- E o Hércules tem a canela muito fina.

- Meu vestido podia ser de folhas.

- Oi?

- O vestido de casamento.

- Com o Hércules?

- Que não vai chamar Hércules.

- Vai chamar Adão.

- Não. Adam.

- Ah é, o letreiro. Resumindo, tem que ser forte que nem o Hércules, ter canela grossa, ser americano, chamar Adam, não pode ser canibal, tem que gostar de costela e de maçã do amor?

- Isso.

- ...

- ...

- Eva..?

- Oi?

- Voce tem consciência de que você vai morrer solteira?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O tiro

Estava de costas, a beira do terraço de um prédio de 12 andares, a ansiedade fervilhando em todas as células do corpo, o desespero lhe escapando aos olhos fechados e escorrendo pelo rosto, lágrimas despencando do queixo em direção ao chão.

Os segundos pareciam horas, dias. Já não tinha mais noção de tempo, tentava buscar o filme de sua vida dentro da sua cabeça, mas tudo o que conseguia pensar é que se não morresse com o tiro, morreria com a queda.

Os dedos se contraíam involuntariamente, a gravata se debatia com o vento. Ele tinha uma idéia.
Iria falar e tentar ganhar tempo. Tinha sempre resolvido as coisas na conversa.

- Porque?

- Cala a boca!

- Porque?

- CALA A BOCA!

- Só quero saber o motivo.

- Vai tomar no teu cu, filho da puta. Cala essa boca!

- SÓ O MOTIVO!

- Voce fala demais.

Morreu. Na queda.