Quer ler o que?

domingo, 30 de outubro de 2011

Clarice

- Anda cá comigo.
- Não quero.
- Por medo?
- Por não querer.
- Te queria.
- Me queria como?
- Andando cá comigo.
- Só andando?
- Queria mais.
- Mais o que?
- Mãos dadas.
- Não quero mais.
- Mais nada mão ou mais andar?
- Mais nada mão.
- Então anda?
- Ando.
- Ao meu lado?
- Ao seu lado.

- Dói?
- O que?
- Andar cá comigo.
- Não.

- Tens medo do que?
- De andar sozinha.
- Não entendo.
- Não gosto de andar sozinha.
- Mas não queria andar comigo.
- Gosta de andar acompanhada.
- Gosta?
- Sim, mas tenho medo.
- Pela companhia?
- Não.
- Medo de que então?
- Perder a companhia.
- Prefere como?
- Sozinha.
- Por medo?
- É, prefiro andar sozinha e não perder.

- As nossas frustrações vem de nós mesmos.
- E não dos outros?
- Não, vem da gente.
- Só?
- Sim. Nós esperamos dos outros o que eles não podem dar.
- É real.
- Quem anda sozinho não tem de quem esperar nada.
- É triste.
- E real.
- É, e real.
- Vamos pra onde?
- Para a direita.
- Vês? Minha vida segue a esquerda.
- Vamos a direita comigo.
- Não posso.
- Por quê?
- Estaria desviando do curso da vida.
- O destino é mutável.
- Mas acá está traçado.
- Vamos a direita comigo.
- Vou perder-me.
- Clarice, perder-se também é caminho.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Mariana

Mariana, acende a luz. Pra quê? Acho que tenho uma resposta pra você. Pronto, acendi. Se entrega. Como assim? É ué, se joga. Não. Me joga da onde? Da ponte? Não, Mariana, foca, se joga na vida, o que a vida te der, você costura. Explique. Mais? É, me dê exemplos. Assim, se a vida te der algodão, faça uma camiseta, se ela te der lã, faça um pullover. Entende? Não. Mariana, se alguém legal aparecer, você costura ele, cultiva a relação... entende? Essas aspas voadoras na palavra costura não adiantaram em nada, mas entendi o raciocínio.

E se a vida não me trouxer alguém legal? Ai, ela vai estar te dando a gandaia, ai, você costura a gandaia. Hun.. e se a pessoa não quiser ser costurada? A gente não obriga ninguém a fazer o que não quer. As pessoas são seres errantes. Errantes, oi? Tipo na biologia, andam a esmo pela vida, procurando um lugar seguro pra se viver, só que na verdade eles nunca param. Tipo glóbulos brancos? Exato! Ficam por ai zanzando até encontrarem seus vírus perfeitos.

Você acredita em alma gêmea? Jamais! Não? Não, existem almas afins, que poderiam se dar bem, mas isso não é exclusivo. Eu acredito, sabia? É? É, acho que a gente tem uma alma gêmea que a gente procura a vida inteira, e as vezes, estamos tão acostumados a procurar que desaprendemo a encontrar. Hun.. é.. pode ser. Vamos dormir? Agora não dá, eu to pensando. Apaga a luz então.Ok, boa noite. Boa noite. ... ... ... Tá dormindo?...Tá?... Mariana! Tá dormindo? To! Ah, ok, boa noite.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cala-te

No início, tudo era dito abertamente, as palavras eram claras e bem projetadas. Todos esbanjavam dicção e contavam sobre todas as coisas que coubessem em palavras.

Contava-se sobre o vizinho, a escola e a festa da semana anterior. Mães se gabavam de suas crianças, funcionários criticavam os salários, chefes reclamavam da conversa e do rendimento baixo do trabalho. E tudo era dito abertamente.

Ele achou estranho o dia em que o volume das vozes começaram a baixar. Os comentários pareciam mais secretos, a exibição de méritos infantis se tornaram mais hostis. Não sabia se seguia o grupo e abaixava o tom de voz ou se mantinha o tom normal, só pra ser diferente.

A cada dia as conversas se tornavam mais cochichadas, e sem perceber se tornaram sussurros quase impossíveis de se identificar. Os comentários eram sibilados lábio afora. As histórias se tornavam difíceis de entender e involuntariamente, ele também se calou.

Quando imerso em silêncio notou que não só as pessoas, mas a cidade havia se calado. Não se ouvia o ranger dos motores, nem as buzinas dos atrasados, nem os pássaros no fim da tarde.

A cidade pulsava em vibrações, mas não em sons. E ele então percebeu que os lábios alheios continuavam seus movimentos, mas as palavras não escapavam. Dentes à mostra sem os sons das risadas. E então, em imensa perplexidade descobriu que não havia mistérios, nem cochichos. Ele havia ensurdecido

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Ressaca

Esse texto foi escrito no dia 15 de setembro de 2011

Não te quero mais. Fujo dos encontros, escapo dos cumprimentos. Passo os dias desviando de você. Desviando dos detalhes, desviando a atenção. Não quero mais te querer.

Chegou-se ao ponto em que você não me faz bem. A necessidade de me afastar superou seus encantos. Degluto comentários e os engulo na ânsia de fazê-los.

Você é Capitu, eu sou Escobar, os olhos de ressaca te pertencem , e quando, em meio a tantas fugas eles me encontram, sugam de mim a coragem e a vontade de distância. Teus olhos arrastam para si todo o meu escudo cuidadosamente polido. Não te quero mais.

Quero você longe.Quero espaço pra me procurar e assim encontrar aos outros. Vá embora, por favor. Não te quero mais por perto, não te quero mais.

sábado, 27 de agosto de 2011

'Nós'

Há tantas coisas as quais eu queria que você soubesse. E todas elas, eu queria que você quisesse saber. Já disse e repito: Eu queria querer alguém que me fizesse querer querê-lo. Mas eu não quero. Quero você.

Não incondicionalmente, mas uma pontinha de mim não me deixa esquecer que talvez fosse gostar de ver aquele show, beber aquela bebida, sentar-se naquela roda. Eu tenho plena consciência de que nada me foi prometido, e que a questão é tão somente minha comigo mesma. Mas como eu disse eu não queria te querer. É involuntário.

Não sei ser do tipo que implora por carinho, ou que evidencia sentimentos. Você provavelmente desconhece que essas palavras são entregues a você. Se é que você está lendo.

Já até pensei em não te convidar para mais nada, e nunca mais, em hipótese alguma, te contar coisas sobre mim ou minha vida. Mas, logo me dou conta de que você não iria sequer perceber.

Não existe um ‘nós’ entre mim e você.

O que me acalma é saber que ‘nós’ é uma palavra dêitica, e o que é dêitico é mutável. Varia conforme queira... É como ‘ali’, que pode ser ‘lá’, ou do lado oposto de ‘lá’, talvez ‘adiante’ ou ‘acolá’. ‘Nós’ é dêitico como ‘você’.Acima de tudo, é dêitico como ‘aqui’ e ‘comigo’.

domingo, 5 de junho de 2011

Meio-dia

Abriu a geladeira e pegou um tomate, cortou-o ao meio, tirou os defeitos e pôs se a picá-lo em cubos pequenos e padrões. Cubos vermelhos com algumas sementes que aparentemente não eram defeitos.

Descascou a cebola, e pôs se a chorar. Não de emoção, de cebola. Lavou os dedos duas vezes, e depois mais uma. O cheiro da cebola entrava na pele e em cinco minutos se tornava dela. A única parte que repugnava na cozinha.

Ela cheirava à tomate, alface, fritura e alho, mas cebola não. Tinha o cabelo preso a um coque que deixava escapar mechas na região dos olhos que se moviam para frente e para trás conforme ela tentava esmagar um alho com a lateral da faca. Ficava mais fácil tirar a casca, e o sabor fluia mais, Ela como sempre gostara de cozinhar, sabia esses truques que mãe ensina durante a vida.

Limpou a mão no avental amarrado na cintura fina, desgrudou um pedaço de salsinha da meia calça e começou a estalar fósforos tentando acender o fogão. Uns escapuliam, outros se quebravam, mas um acendeu. O fascínio era tão grande que depois de acender a terceira boca, ela ficou ali olhando para o palito sendo consumido, até queimar-lhe a ponta dos dedos. Riu com seu devaneio. A cozinha era um sonho.

Panelas a postos, colher na mão e logo o arroz já estava encaminhado, o feijão quase fervendo, a salada organizada e a carne picadinha. O som da cozinha era como uma orquestra, coordenada pela figura magra e bonita que não cheirava à cebola.

Os cheiros de comida pronta saltavam das panelas em direção as narinas que iam se acumulando, primeiro a dela, depois a das crianças e em seguida a do marido, que não era dela. Pegou as panelas que não eram dela, e serviu às crianças que não eram dela, tirou o avental que não era dela, e foi para a sala passar cera no chão. O sonho acabara, e ela cheirava à cebola.

domingo, 15 de maio de 2011

A cadeira

Sentado na poltrona, observava o tempo que corria pela cadeira da mesa.

De madeira com cascas pulando pelas costas e cheia. Cheia de histórias, de música, de memórias. A cadeira cheirava à saudade e fazia o peito doer. Junto com o peito doía a retina. Não saiam lágrimas, por isso que doía. Sem planos para ir embora, era remanescente e muito bem acomodada. A dor morava ali. Se aconchegara em algum lugar intransponível e só dava a graça de vez em quando, de vez em sempre.

Não era o tipo de dor que impede felicidade, É do tipo que visita, e aí dói a retina. Como já foi dito. Ele estava ali, Ouvindo a música que escapava da cadeira, o som da voz, do batuque, das risadas. Era o tiquetaquear dos anos, o som de vida interrompida pela morte.

As histórias que escorriam pelas pernas roliças de madeira velha, contavam sobre crianças sentadas ao redor de seus pés, estonteadas com as maravilhas que os lábios ali sentados gostavam de narrar.

As mãos, também na cadeira, voavam pelos ares buscando expressões. A história não se continha naquelas paredes, a história transcêndia a casa, a cidade, a terra. Foram vividas em outros tempos. Tempos com mágica, criaturas e parceiros para sempre. Tempos que a cada janeiro, se distanciavam milhares e milhares de anos.

Os lábios se foram, junto com as mãos e com a magia, e naquele canto restou a cadeira, e dentro dela, a saudade.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Taís

Os lábios se distanciavam por um centímetro. Não dois pares de lábios, dois lábios. Nunca vira superior e inferior se tocando. Eles só pairavam num rosto sonolento e desavisado.

Era provavelmente uma condição médica, porque o garoto respirava pelas papilas. Se não fosse doença, não tinha desculpa que justificasse aquele espaço de um dedo no meio da boca.

Até comendo. Ou o garoto engolia de boca aberta ou só quando ninguém estivesse olhando. Não era possível! Pra mastigar, de boca fechada ele não fazia questão. Deviam filmar a boca dele durante uma refeição. Daria pra explicar a digestão do amido de forma dinâmica.

E o garoto da boca aberta tinha um amigo de bochechas grandes. Ela podia jurar que uma mão espalmada não cobriria toda a área de possível contato, a bochecha dele se media em pés. Elas sobrepunham a boca e geravam um visual ‘Emília a procura do visconde’

Perto daquelas bochechas, até o nariz se inibia, os olhos fitavam miúdos e as orelhas se escondiam. Pra complementar, as bochechas eram fora do contexto, pois o menino era magro. Muito magro. O peso da cabeça fazia com que andasse pendulante.

Ao lado dele se sentava uma garota loira de cabelo descolorido e ressecado que era amiga de outra com gengivas que vazam os lábios. A loira namorava um menino narigudo com estômago alto que respirava pelo diafragma como uma criança de cinco anos.

Taís, a observadora, não tinha lábios separados, nem bochechas grandes, nem cabelo ressecado, nem gengivas aparentes, nem assunto.

terça-feira, 19 de abril de 2011

O pátio

Caminhava em passos desajustados, pendendo para as laterais. As calças grandes se prendiam logo abaixo do umbigo por um cinto verde musgo extra grande. A camiseta que folgava no ombros e apertava na barriga, sobrepunha o jeans e ressaltava a fivela prateada. Com pés curvados, usava um tenis com cadarços soltos cor marrom-pisoteado.

Carregava em seus braços livros que escapuliam pelas direções, e de modo desajeitado, segurava pelas rebarbas, caadernos abertos com folhas escapando das espirais. Com as mãos ocupadas, levou o rosto até a palma numa tentativa de ajeitar o aro dourado do óculos que escorregava pelo nariz. Acabou por imprimir as digitais do punho na lente esquerda.

Escalava até o outro lado do pátio da escola, por entre os estudantes, na expectativa de chegar até a sua sala com os livros inteiros. Os cadarços soltos ricocheteavam nas canelas e nas meias cinza escuro. Suor escorria por sua testa, desviando das espinhas e se concentrando na sobrancelha.

Foi quando o viu. O jovem formoso com boné para trás e pés direitos. Rodeado por capangas, tinha seus cadarços presos, e nem uma gota de suor. Com sua mochila quase vazia, usou as mãos livres para arrumas o óculos de sol, riu e gritou: ‘Depressa, Bujão!’.

A voz ecoou pelo pátio e os chapas começaram a rir repetindo: ‘Depressa, Bujão!’, alguns até encrementavam: ‘corre pra ver se emagrece!’

Por um mar de risadas ele se esquivou pela multidão, lutava contra os livros, e também contra as lágrimas, que se misturavam ao suor e camuflavam a humilhação que lhe escorria sob as pálpebras.

domingo, 3 de abril de 2011

A efemeridade do mundo.

A vida é efêmera. Foi o que me disseram. Concordei por algum tempo, mas agora discordo. As pessoas é que são. Nossas ações fazem apologia à efemeridade. A frequência com que desistimos das chances, dos dons, dos objetivos, das pessoas.

Quando criança, fiz aula de violão, parei. Na adolescência, não entendi química, nunca mais tentei aprender. Pratiquei o desleixo, a protelação, o desapego. Quantas amizades, que iriam durar para sempre, acabaram. Não é uma pergunta, é uma afirmação. E a efemeridade não vem só de um, ela inunda o nosso dia a dia e nos acostumamos a viver imersos na filosofia de que a vida é feita de fases, de que quando uma porta se fecha, uma janela se abre.. Culpamos à distância, a rotina, um desentendimento, sempre estamos ocupados demais.

Nossos amores se reciclam. O problema não é o fim. Mas sim a falta de garra com que encaramos nossos problemas, nossas relações. Quantos divórcios são assinados, quantas amizades acabadas por simples preguiça, comodismo, covardia de assumir que estamos do lado errado da discussão, orgulho. Ah o orgulho! Somos todos Ego, somos todos Ísta. Somos preenchidos por um orgulho cego, que inebria nossas ações.

E sempre seguimos, porque afinal estamos vivos e é isso que importa. Tem sempre um copo de cerveja gelada, com gotículas de água condensada escorrendo por fora do vidro, esperando pela gente sexta feira. Porque o que importa é a festa, não a companhia. O que importa é a foto irradiando felicidade, é a imagem que os outros veem da gente, não o que a gente realmente sente.

O vazio, a solidão, isso é coisa de gente deprimida. Mas nós não. Nós somos amados, felizes, não damos a mínima pras coisas que passaram, porque estamos sempre em outra. Vivendo o presente, almejando um futuro que nunca chega. Todo mundo é feliz, todo mundo sabe sambar. Nunca somos derrotados.

É esse pensamento febril, doente que permite a prática da efemeridade, que permite o fim sem nem ao menos tentar. As pessoas tem vergonha de correr atrás, de se redimir, pedir desculpas. Nós somos muito seguros de nós mesmos e nunca cometemos erros. Vivemos a vida, na mais completa inversão de valores e tudo bem. Porque enquanto o coração bater, e o sorriso estiver estampado na foto da balada, nada mais importa. Somos efêmeros.

domingo, 20 de março de 2011

Lavou o rosto com angústia e buscou a camisa, emprestada do patrão, na cadeira. Sentiu o algodão, que corria por seus braços e passou os botões por dentre o tecido listrado. Vestiu a calça social cinza, comprada para o enterro do pai, e na falta de cinto formoso, usou um cadarço amarrado a outro. Vestiria sempre o paletó.

Vestiu o pé com meias esportivas tingidas com anilina preta, e por cima os sapatos formais que ganhara do tio. Provavelmente o veria. Pegou a gravata azul, comprada para a ocasião, e passou ao redor do pescoço.Deu um nó com perfeição e o deixou frouxo. Não gostava do nó tocando a garganta. Puxou, pelo colarinho, o paletó que antes estava cuidadosamente dobrado e saiu.

Checou os bolsos por dinheiro para o ônibus e caminhou em direção ao ponto, vestindo o paletó. Duas horas mais tarde, desceu em seu ponto final, em frente ao velório da Paz. Ficou ali, parado, olhando para a porta que descascava tinta branca, revelando a madeira levemente apodrecida.

Adentrou as paredes amarelas que formavam o corredor. As salas por quais passava, transbordavam dor e angústia. Assim como ele. De certa forma, a “transbordância” dos outros fazia com que sentisse melhor. Parou. Estava em frente a uma placa que indicavaa sala G. Subiu o nó da gravata, engoliu o nó na garganta e entrou. Chorou ao ver sua mãe, pálida como nunca fora.