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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A vizinhança

Maria tinha duas vizinhas, uma chamada Perla e outra chamada Kátia. Moravam na mesma rua, dividindo a mesma calçada. A rua em que moravam era aquelas ruas de cidade pequena, com paralelepípedos e árvores antigas que racham a calçada. Perla reclamava de uma mesma raiz, que estava se aproximando de sua mureta, pelo menos três vezes por semana, o momento em que ela começava a falar sobre a rachadura era o mesmo momento que Maria repentinamente precisava lavar a louça e Kátia escutava um dos filhos chamando por ela dentro de casa.

Kátia havia se mudado para aquela rua há oito anos, era a mais recente do grupo, no começo ela se sentia um peixe fora d’água, Perla e Maria já se conheciam há 13 anos quando ela chegou, demorou um tempo até que ela conseguisse se enturmar com as vizinhas. Nesses oito anos ela tinha tido 4 filhos, quatro crianças que Kátia amava muito, mas desejava profundamente que fossem visitar os avós na cidade vizinha. Ela torcia para que a visita durasse dias, quiçá semanas. Era nesse momento que ela assistia 'Passarela, um encontro sobre moda com Glécia Silverschwartz’. Ela queria ser glamurosa como a apresentadora, usar aqueles sapatos de verniz com a fivela roxa transbordando a confiança e a certeza que ela via em Glécia. E o sobrenome então? Kátia era Silva, Glécia era Silverschwartz, soava bastante internacional, tudo muito glamuroso. Maria achava que Glécia era muito superficial, falando de roupa o tempo todo, ditando o certo e errado sobre uma saia lápis maxi. - ‘Ela só pode falar sobre isso porque nunca pariu, ja viu alguma mãe caber numa saia lápis 36?’. Perla se abstinha do assunto, assistia o programa, mas no fundo não sabia o que significava o nome da tal saia.

Um dos assuntos preferidos das três era Carmem, ahh a vaca da Carmem. Carmem era a vizinha da frente, segunda as amigas ela se esforçava demais. Tinha aquele olhar de quem suplica pra entrar na brincadeira, mas no fundo não conhece o jogo. Carmem já tinha tentado de tudo pra entrar naquela turma, presenteava biscoitos, bolos, tortas, coxinhas e jabuticabas do quintal. As meninas pegavam a oferenda, sorriam, comiam e continuavam sem convidá-la pra assistir o programa da Glécia. Primavera atrás de primavera Carmem tentou se enturmar, mas existia uma barreira que sempre a excluía das discussões.

As três discutiam constantemente, mas estavam sempre juntas, desde os momentos que o filho de uma chutava o chão da quadra da escola e arrancava a tampa do dedão até o momento que a filha de outra ganhava a medalha da olimpíada de matemática do ensino fundamental. Em uma quarta-feira ensolarada Perla morreu. Dentre as coisas que deixou pra trás, ficou um marido que se perguntava como iria fazer a janta e duas amigas que choraram copiosamente por semanas. As duas então se mantiveram unidas e amigas, se apoiando naquele momento de perda. Carmem levou sopa, o marido começou a pedir marmita e a vida seguiu.

Em um sábado nublado Maria infartou. Ficou Kátia, com as crianças correndo pra lá e pra cá e sua angústia procurando descanso. Kátia tentou ver o show da Glécia, mas o programa se tornou muito dolorido, chamou Carmem pra ir ao mercado, mas, apesar dos pastéis, a amizade não deu certo. Tirou a raiz da calçada, consertou a rachadura e comprou um sapato de verniz. Nada parecia confortá-la. Kátia morreu 3 meses depois. Sobraram na vizinhança os marido, os respectivos filhos, Carmem, seu vidro de arsênico e sua saia lápis maxi.

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