Parou em frente a casa, única no quarteirão, e desligou o carro. A casa era revestida de plantas, folhas verdes brotando do chão até as telhas. Atravessou a rua e tocou a campainha.
Uma senhora apareceu na janela e, por entre as plantas, viu o homem de terno preto e uma pasta na mão.
Abriu a porta da casa e saiu em passos miúdos em direção ao portão carregando um molho de chaves. Foi testando uma a uma no cadeado do portão. O homem era alto, gordo e tinha um queixo protuberante. Convidou-o a entrar com um gesto, e o seguiu até a sala de estar.
Apontou para o sofá e sorriu assentindo a cabeça. Sumiu por uns minutos, voltou com uma bandeja, uma chaleira e duas xícaras.
- Chá?
- Aceito, obrigado.
Com as mãos tremulas, serviu as duas xícaras e se sentou.
Ficaram durante todo o chá em silêncio.
A senhora, de olhos fechados, respirava o vapor em busca do aroma. Passaram-se 15 minutos de silêncio.
- A senhora deve ser a Dona Alva.
Ela assentiu.
- Meu nome é Estevão. Estevão Jordão. Eu sou corretor... – Ele interrompeu.
Ela tinha levantado a mão em pedido de silêncio.
- Sei do que se trata.
- Nós podemos pagar o dobro do valor da casa.
- Não estou interessada.
- Posso falar com o meu chefe, podemos negociar.
- Não, obrigada.
- Um preço bom.
- Não.
- Dona Alva, esse é um bairro perigoso para uma residência.
- Prefiro correr os riscos.
- O centro está longe, não existe mais vizinhança.
- Não quero que a minha casa morra.
- Desculpe?
- Não quero que a minha casa morra.
- Quantos anos a senhora tem, Dona Alva?
- O suficiente.
- Deixa eu te explicar, Dona Alva. Sua casa não vai morrer. Não tem como morrer. Uma casa é um objeto. Objetos não morrem.
- Uma casa morre quando se varrem as lembranças.
- Dona Alva, tire umas fotos, registre suas memórias, e guarde todas em um álbum. Não em uma casa. A senhora mora sozinha. É perigoso uma senhora da sua idade viver sozinha. A empresa pode pagar uma casa de retiro para a senhora. Lá você vai estar sob cuidados.
Dona Alva se levantou e caminhou até a estante onde guardava porta retratos.
- Não, obrigada.
- Sejamos razoáveis Dona Alva, a senhora não tem mais condição de viver sozinha.
A senhora se virou para a direção do corretor respirando fundo e marejando os olhos. Começou a falar lenta e pausadamente.
- Eu me casei, cuidei do meu marido até o dia 22 de abril. A partir daí, criei dois filhos por minha conta. Eu sei como viver sozinha nessa casa. Não estou interessada.
- A senhora podia ir morar com um dos seus filhos.
- Não posso.
- Eles estão desempregados? Podemos oferecer emprego na nossa empresa.
- Morreram.
- Dona Alva, perdão pela indelicadeza, mas a morte é inevitável , talvez seja essa a hora da senhora se desapegar dos bens materiais e aceitar o curso natural da vida. Eu por exemplo perdi uma namorada, mas segui em frente.
- O senhor já perdeu dois filhos senhor Estevão?
- Não.
- Não tente se colocar no meu lugar e eu não vou tentar me colocar no seu. Não estou interessada.
A senhora saiu a passos curtos em direção à cozinha levando a bandeja, a chaleira e as xícaras.
O corretor começou a andar pela casa observando as fotos e as plantas que forravam as paredes. A casa tinha paredes quentes, revestidas por folhas verdes e flores coloridas. No quintal e na sala de estar só se viam flores.
Ele se aproximou de uma bromélia que brilhava e a tocou. Saiu por todo o aposento passando os dedos nas flores e folhas freneticamente.
Parou quando viu o reflexo de Dona Alva na cristaleira.
- Dona Alva, posso fazer uma pergunta?
Ela assentiu.
- Porque a senhora tem tantas flores como essas?
- Senhor Estevão, essas flores te acompanham. Não importa o que aconteça, chuva ou sol, elas te acompanham.
- Não é natural.
- A ilusão é o preço que se paga pela esperança de estarmos acompanhados.
- Não é real Dona Alva.
- Compensa.
- Mas são de plástico!
- Senhor Estevão, as flores de plástico não morrem.
Sim, Titãs.
terça-feira, 27 de outubro de 2009
terça-feira, 20 de outubro de 2009
Hércules
- To indo. Você viu meu casaco preto?
- Na tua frente.
- Ahn.
- ...
- Sabe o que eu tava pensando?
- Sei.
- Sabe?
- Não.
- Quer saber?
- Não.
- Tava pensando que seria super legal se eu casasse com um Adão.
- Você não é católica.
- Mas soa profético.
- Nossa.
- Sério. Podia ter um letreiro luminoso atrás do padre escrito: "Adão e Eva, mean to be".
- Que cafona.
- O letreiro?
- Também.
- O inglês?
- No Brasil é cafona. Escreve um "Era pra ser" que fica menos cafona.
- Ao não ser que eu case nos Estados Unidos.
- É.
- Ah.. Mas ai não vai chamar Adão..
- Por?
- Vai chamar Adam.
- Nossa. Você não tava indo?
- Tava...
- Beijos.
- Podia ter maçã de lembrancinha!
- Podia
- Maçã do amor! Uma árvore de maçã do amor!
- Beijos.
- O prato principal podia ser costela.
- Teoricamente isso seria canibalismo.
- Será que eles eram canibais?
- Quem?
- Adão e Eva.
- Nem que eles quisessem.
- Porque?
- Eles eram os únicos humanos do paraíso.
- Eles tiveram filhos, eles podiam comer os filhos.
- Baby beef.
- Ai que horror.
- Quem comia os filhos eram os titãs
- A banda?
- Não! O pai e os tios de Zeus.
- Pai do Hércules?
- É.
- O Adão podia ser forte que nem ele.
- Que nem o Zeus?
- Pensei no Hércules. Porque Zeus tem cauda de peixe.
- Quem tem cauda de peixe é o Tritão, pai da Ariel.
- Ah é.
- E o Hércules tem a canela muito fina.
- Meu vestido podia ser de folhas.
- Oi?
- O vestido de casamento.
- Com o Hércules?
- Que não vai chamar Hércules.
- Vai chamar Adão.
- Não. Adam.
- Ah é, o letreiro. Resumindo, tem que ser forte que nem o Hércules, ter canela grossa, ser americano, chamar Adam, não pode ser canibal, tem que gostar de costela e de maçã do amor?
- Isso.
- ...
- ...
- Eva..?
- Oi?
- Voce tem consciência de que você vai morrer solteira?
- Na tua frente.
- Ahn.
- ...
- Sabe o que eu tava pensando?
- Sei.
- Sabe?
- Não.
- Quer saber?
- Não.
- Tava pensando que seria super legal se eu casasse com um Adão.
- Você não é católica.
- Mas soa profético.
- Nossa.
- Sério. Podia ter um letreiro luminoso atrás do padre escrito: "Adão e Eva, mean to be".
- Que cafona.
- O letreiro?
- Também.
- O inglês?
- No Brasil é cafona. Escreve um "Era pra ser" que fica menos cafona.
- Ao não ser que eu case nos Estados Unidos.
- É.
- Ah.. Mas ai não vai chamar Adão..
- Por?
- Vai chamar Adam.
- Nossa. Você não tava indo?
- Tava...
- Beijos.
- Podia ter maçã de lembrancinha!
- Podia
- Maçã do amor! Uma árvore de maçã do amor!
- Beijos.
- O prato principal podia ser costela.
- Teoricamente isso seria canibalismo.
- Será que eles eram canibais?
- Quem?
- Adão e Eva.
- Nem que eles quisessem.
- Porque?
- Eles eram os únicos humanos do paraíso.
- Eles tiveram filhos, eles podiam comer os filhos.
- Baby beef.
- Ai que horror.
- Quem comia os filhos eram os titãs
- A banda?
- Não! O pai e os tios de Zeus.
- Pai do Hércules?
- É.
- O Adão podia ser forte que nem ele.
- Que nem o Zeus?
- Pensei no Hércules. Porque Zeus tem cauda de peixe.
- Quem tem cauda de peixe é o Tritão, pai da Ariel.
- Ah é.
- E o Hércules tem a canela muito fina.
- Meu vestido podia ser de folhas.
- Oi?
- O vestido de casamento.
- Com o Hércules?
- Que não vai chamar Hércules.
- Vai chamar Adão.
- Não. Adam.
- Ah é, o letreiro. Resumindo, tem que ser forte que nem o Hércules, ter canela grossa, ser americano, chamar Adam, não pode ser canibal, tem que gostar de costela e de maçã do amor?
- Isso.
- ...
- ...
- Eva..?
- Oi?
- Voce tem consciência de que você vai morrer solteira?
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
O tiro
Estava de costas, a beira do terraço de um prédio de 12 andares, a ansiedade fervilhando em todas as células do corpo, o desespero lhe escapando aos olhos fechados e escorrendo pelo rosto, lágrimas despencando do queixo em direção ao chão.
Os segundos pareciam horas, dias. Já não tinha mais noção de tempo, tentava buscar o filme de sua vida dentro da sua cabeça, mas tudo o que conseguia pensar é que se não morresse com o tiro, morreria com a queda.
Os dedos se contraíam involuntariamente, a gravata se debatia com o vento. Ele tinha uma idéia.
Iria falar e tentar ganhar tempo. Tinha sempre resolvido as coisas na conversa.
- Porque?
- Cala a boca!
- Porque?
- CALA A BOCA!
- Só quero saber o motivo.
- Vai tomar no teu cu, filho da puta. Cala essa boca!
- SÓ O MOTIVO!
- Voce fala demais.
Morreu. Na queda.
Os segundos pareciam horas, dias. Já não tinha mais noção de tempo, tentava buscar o filme de sua vida dentro da sua cabeça, mas tudo o que conseguia pensar é que se não morresse com o tiro, morreria com a queda.
Os dedos se contraíam involuntariamente, a gravata se debatia com o vento. Ele tinha uma idéia.
Iria falar e tentar ganhar tempo. Tinha sempre resolvido as coisas na conversa.
- Porque?
- Cala a boca!
- Porque?
- CALA A BOCA!
- Só quero saber o motivo.
- Vai tomar no teu cu, filho da puta. Cala essa boca!
- SÓ O MOTIVO!
- Voce fala demais.
Morreu. Na queda.
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