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domingo, 11 de abril de 2010

Cecília

Os dedos empurravam a agulha que puxava a linha de costura. O desenho de um urso empurrando uma carriola cheia de corações começava a se formar na tela de ponto cruz.

Ela estava sentada em uma cadeira de balanço ao lado do balcão da cozinha, onde seu marido picava pimentões vermelhos e monologava reclamando sobre sua falta de atenção. Ela estava concentrada se esforçando ao máximo para ignorá-lo. Ponto cruz era uma das duas coisas que a faziam relaxar. Ela entrava em uma espécie de transe que a protegia do mundo externo, e o mundo se protegia dela.

'Você... atenção...'

A voz dele rasgava a paz que ela buscava na linha azul que em breve formaria o macacão do urso.

 'Menina... braço...'

 Ela tentava afastar a voz que agora a culpava pelo acidente da criança.

A filha, de quatro anos, do vizinho tinha quebrado o braço horas antes pulando de cima da mureta e aparentemente a culpa era dela. Por estar sentada numa cadeira na calçada, ela foi considerada o adulto responsável da ocasião.

No momento em que a menina pulou do muro, ela estava concentrada em abstrair o mundo exterior. Ela estava ocupada fazendo os sapatos do urso. A voz aguda da criança questionava demais. O porquê do circulo de madeira, o porquê de a linha ser azul, o porquê de ser um urso. Crianças sempre querem saber demais. E ela precisava se proteger do mundo, e o mundo se proteger dela.

'Sua culpa... chorando...'

A voz fatiava as barreiras que ela costurava ao seu redor. De baixo pra cima, diagonal... 'muro...' de cima pra baixo... 'pulou...' diagonal, de cima pra baixo, reto.. 'braço...' As palavras penetravam sua bolha de silêncio... 'essa merda de ponto cruz'.

'Para de falar!' As palavras escaparam da garganta em um tom mais alto do que ela previu. Fechou os olhos e tentou respirar fundo. Abriu os olhos e agora o marido estava parado em frente à cadeira de balanço

'Você precisa se controlar, Cecília..' Ele começou um sermão e enquanto falava, rodava a faca de cortar carne que estava repleta de cubinhos de pimentão grudados na lateral. Um cubo de pimentão voou pela sala, ricocheteando no abajur e grudando na cristaleira. Ela acompanhou, com os olhos, o movimento do legume que escorregava pelo vidro, deixando um trilho de azeite.

Olhou para baixo e continuou o ponto cruz. De baixo pra cima, diagonal, de cima pra baixo, reto, de baixo pra cima, diagonal..

'Cecília, você precisa entender que o mundo é maior do que o seu ponto cruz'. Ele voltou a falar, mas agora batia na testa dela com o indicador da mão livre. ' Isso precisa entrar na sua cabecinha...'.

Ela respirou fundo, sentiu o calor subindo pelas pernas, pelo tronco. A onda fervilhante percorreu os braços até a ponta dos dedos. Tentou focar no ponto cruz, mas era tarde demais.

Arrancou a faca, cheia de pedacinhos de pimentão, da mão direita do marido e cravou o pedaço de metal na altura do estômago do homem parado à sua frente. Enfiou a faca até o cabo, ela sentia o sangue escorrendo pelos dedos, pelas mãos. Uma gota desceu pelo braço iniciando um fluxo que despencaria no cotovelo.

Os olhos dele se encheram de lágrimas, os dela de satisfação.

Ela sentiu felicidade se espalhando pelo corpo que formigava de prazer. O corpo pesava em direção à faca. Rodou a cabeça, estralando o pescoço e forçou o corpo ainda quente na direção oposta à ela. O cadáver caiu acertando a mesinha de centro.

Foi até a pia e lavou as mãos. Ele estava morto, ela relaxada. Sentou na cadeira de balanço e, aproveitando o silêncio, terminou o ponto cruz.

9 comentários:

  1. Vc gosta mesmo de textos escatológicos, né? hahaha

    Belíssimo texto, belíssima escrita, ótimo fluxo do tempo...


    Tudo muito bom, parabéns.

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  2. mulheres e seus 'pontos cruz',foi bom pra orientação,nunca mais interrompo minha vó quando ela estiver costurando,enfim,bela.
    abraço !
    ps:concordo com tudo que o moço em cima disse.

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  3. Ponto cruz acalma. Eu devia começar um agora, pra ver se não mato alguém.

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  4. Oi, ontem almocei com seus avós,tios(Maria,Nildson,Liliane) e o Vitor. No final do almoço o seu tio ligou o not e a Liliane leu seus posts. Todos ficaram com muita saudade!
    Eu adorei eus textos...são muito verdadeiros...daquele tipo que a gente fica pensando que aconteceu mesmo...mesmo que seja só na sua cabeça rsrs...mas será que vc lembra de mim?.Se esse não for o caso me apresento: Sonia Guzzi.

    Gde abraço, em divina amizade,

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  5. Júh, AMEI! Invejinha, hehehehe Adorei a ação psicológica....

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