Pedro entrou em casa, e jogou a pasta no sofá em frente da mesinha recheada de fotos. Chamou pela mãe. Manteve-se o silêncio. Foi para a cozinha, afrouxando a gravata, preparou um lanche, e olhou pela janela. Viu uma senhora de costas com um pincel na mão. Ela mergulhava a ponta do pincel em uma paleta com tintas que formariam uma tela predominantemente azul. Com tons variados, mas sempre azul. Lembravam ondas, lembrava a água, lembrava o mar.
Chegou falando alto, e contando sobre seu dia. Era uma rotina. Chegava, jogava a pasta, afrouxava a gravata e ia sempre para o jardim monologar com a mãe, nem que fosse por cinco minutos. Fazia isso desde sua adolescência. Evitava os olhos, mas contava detalhes do seu dia-a-dia.
Moravam num sobrado, só os dois. Mãe e filho. Deu uma mordida no sanduíche de pepino e ofereceu a mãe, que mergulhou o pincel em azul Royal. Elogiou a pintura, os cabelos, e as unhas cor de rosa e sujas de tinta. Foi para o banho.
Sentia a água escorrer, lavando todo o cansaço, o tédio e a força. Sentia a coragem escorrendo pelos dedos do pé junto com a espuma do xampu, que lavava corpo, pele e simpatia. O bom humor sintético escorrendo pelos ralos.
Enxugou o corpo, os olhos e refreou a vontade diária de chorar. De pijamas desceu as escadas e voltou para o jardim. A tela estava terminada. Uma Margarida branca afogada no fundo do quadro azul. Com cuidado, acompanhou a senhora, que segurava pincel e paleta na mão até o quarto. Limpou as unhas sujas de tinta, lavou as mãos já enrugadas pelos anos, e os cabelos brancos e longos. Não se olharam.
Arrumou-a na cama, e a cobriu como se fosse pai. E com um beijo na testa se despediu. Voltou para o jardim, recolheu a tela. Era domingo. Levou a obra para o quarto dos fundos.
Era pequeno e alto, muito alto. Cheirava a tinta. Com a luz acesa, podia se ver centenas de quadros azuis que subiam pelas paredes até o teto. Juntos davam a sensação de uma tormenta. Pegou a escada e subiu quase alcançando o teto. Mais um no meio de tantas Margaridas. Colocou em cima de um especialmente belo. Ao sair, agarrou uma tela branca e apoiou no cavalete, pronto para o dia seguinte.
Se sentia cansado, do trabalho e da rotina. Se sentia culpado, mas cumprindo seu dever. Queria se sentir leve, mas para isso precisava perdoar a si mesmo. Na sala, guardou as fotos espalhadas na mesinha de centro em uma caixa branca com um laço de madeira. Todas da irmã, Margarida, que na infância, ele assistiu ser levada no mar.
Menina de Deus, que texto bonito... beijo
ResponderExcluirchocante.
ResponderExcluirNuss, bom mesmo.... simbólico...
ResponderExcluirGostei =)
ResponderExcluirJúlia,
ResponderExcluirVejo que você transita com estilo também pelo caminho do drama, criando textos muito sensíveis!
É legal ver seu trajeto de escrita na memória deste blog, que atesta um amadurecimento que vem se fazendo há dois anos...
Muito bom!
Boto fé.
Margarida, a Amália.