Quer ler o que?

domingo, 9 de setembro de 2012

O cristal

Puxou-a pelo braço, fincando os dedos sujos de terra, em seu cotovelo. Em um assalto arremessou-a através da sala. Ela voou. Como que por inércia, se deslocou destruindo os móveis pelo caminho até atingir a estante que derrubou todos os livros e bibêlos pelo impacto. Caiu sentada.

Viu um abajur se aproximando, em direção ao seu rosto e jogou o torso para a direita. Estava frágil, vulnerável e sentia um fio quente escorrer pelo nariz. Sentiu o gosto do próprio sangue que entrava pela boca e se espalhava pelos dentes.

Olhou para cima e viu o sol ser encoberto por braços grandes ao lado de costas largas. Ela estava nas sombras. Ele a levantou pelos ombros, com a mesma facilidade que uma mãe levanta um bebê, e deixou-a despencar no sofá azul royal. Ela afundou, tentando atravessar pelas almofadas. Não conseguiu. Ela ainda estava lá.

Ele abriu um botão e com uma mão abaixou o zíper, enquanto com a outra segurava-a pelo queixo, apertando suas bochechas. Ela soçobrava balbuciando por favores que se perdiam em meio a tantos vasos quebrados. Ela se rendeu. Deixou a cabeça cair pelo braço do sofá e aceitou seu destino.

Ela encarava um adorno de cristal, quase podia ver ser reflexo. Passou os olhos pela base heptagonal do arranjo. Era uma peça pontiaguda, que formaca uma espécie de cone. Como a ponta de uma lança. Uma lança. Lança.

Moveu quase que imperceptívelmente o braço em direção à mesa de canto. O braço sacudia em movimentos repetidos que partiam do corpo em cima dela. Ela segurou a peça, como quem segura um punhal, deixou o braço cair, passando o objeto por baixo da saia do sofá. Suas mãos seguravam o cristal com tanta determinação que ela podia sentir as impressões da peça.

Num movimento furtivo, viu o braço fazer um movimento arqueado e instintivo, deixando a peça aterrisar com a ponta fincada na nuca do homem. O movimento parou, e ela sentiu o peso do corpo despencar sobre ela. Podia sentir o calor do sangue, que ainda jorrava, nas mãos. Viu escorrer as hemoglobinas pelos dois lados do pescoço, formando uma gargantilha em que o pingente escorria no peito dela.

Sentia a adrenalina pelo corpo, e soltou vagarosamente a peça de cristal, empurrou o corpo sofá a baixo, se levantou desviando as pernas mortificadas, e tremendo foi até a pia da cozinha, lavou as mãos em desespero, pegou as luvas de borracha, vestiu o sobretudo que estava em cima da mesa, abotoou até o pescoço cobrindo todas as marcas vermelhas do corpo nu e saiu. Vestia as luvas de borracha e os pés descalços. Deixou no apartamento as roupas e a integridade. Nunca contou pra ninguém.

Um comentário:

Receber comentário anônimo não faz sentido. Assinem!